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IN-BETWEEN "ARCHITECTURE IN MOTION"

Ruínas e Espaços Abandonados

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Ruínas e Espaços Abandonados

Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794) postulou na sua famosa lei da conservação da massa “na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Entendemos que na arquitetura também tudo se transforma, mas com criação e perda. Talvez se atentarmos na estrita formulação de Lavoisier “numa reação química feita em recipiente fechado, a soma das massas dos reagentes é igual à soma das massas dos produtos” encontremos, logo aí, a razão principal desta diferença tão significativa. A arquitetura, os nossos edifícios e cidades, não existem num sistema fechado, são de facto, obras abertas. Abertas à nossa vida, com as suas mudanças, atenções e desatenções, desejos e temores.

 

Na verdade, a arquitetura e as cidades são sistemas complexos e fascinantes que podem ser estudados e compreendidos através de diversos prismas e diferentes instrumentos de investigação. Muitos e diversos autores podiam ser referidos, uns mais ligados à própria história e teoria do universo da arquitetura, outros que ligam esta teoria à prática, outrem que estão mais próximos das ditas ciências duras e outros pelo contrário das humanidades que como sabemos integram diferentes disciplinas de filosofia, arte e sociologia[1]. Não é nosso objetivo argumentar que a Arquitetura é uma arte em oposição a uma ciência, mas sim referir que a arquitetura nunca é apenas um só destes mundos e que existe uma natural contaminação entre arquitetura e arte, algo que é explicado por diversos autores[2] e corroborado pelos nossos arquitetos Pritzker's, nomeadamente Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura[3]. Acreditamos assim que o universo da Arquitectura deve ser entendido de uma forma abrangente como uma prática e disciplina capaz de integrar os domínios sócio - económico, político, histórico, artístico e técnico.

 

 

Neste contexto, interessa-nos particularmente explorar através do universo da imagem, nomeadamente da fotografia e do desenho, determinadas arquiteturas. O intuito é o de criar um projeto documental e artístico tendo como base o estudo e visitas a edifícios interessantes do ponto de vista arquitetónico, e que pelas mais variadas razões estão esquecidos, abandonados ou expectantes e colocados no mercado imobiliário.

 

Poderão ser edifícios mais ou menos conhecidos e anteriormente registados e/ou documentados, ou não, mas serão sempre edifícios que previamente se supõe terem algum interesse arquitetónico. Podem estar esquecidos ou abandonados, mas podem também estar a ser objeto de transação imobiliária, o que por vezes implica sempre mudanças no edifício: desocupação, reocupação, acompanhadas de maiores ou menores alterações de uso e forma.

 

Estas transformações, de uso e forma, são características das cidades como sistemas abertos em constante mudança e podem ser de graus e intensidades muito diversas. Na verdade, os projetos sobre estas arquiteturas abandonadas e / ou expectantes serão sempre uma oportunidade para olhar para estes lugares ou não-lugares como espaços de entropia, espaços que estão in-between. Entre a sua recuperação ou demolição, esta entropia pode ser tornada visível como, por exemplo, acontece nos trabalhos de Maros Krivy[4] sobre o espaço de cidade e arquitetura, onde a fotografia está presente de forma significativa. Para Krivy, a Entropia pode ser considerada como a observação de um estado de crescente complexidade de um determinado sistema. Desta forma, olhando para certas arquiteturas que se encontram ameaçados de transformação radical ou que estão simplesmente abandonados, Krivy explora esses espaços in-between, tornando visível essa entropia.

 

Até a eventual demolição, estes edifícios poderão ser visitados e estudados com o objetivo de desenvolver um trabalho documental e artístico, estando essas arquiteturas entre proprietários num momento expectante do que virá a seguir.

 

Os nossos projetos não visam congelar o tempo devir e o seu objetivo primo é o de explorar a transformação dos edifícios e perceber a sua arquitetura, tirando partido do potencial de um registo documental contemporâneo e eventualmente de registos do seu passado e assim ter acesso (ainda que virtualmente) a várias vidas do mesmo edifício e abrir desta forma a possibilidade para um trabalho de refotografia, uma estratégia com um grande potencial e já explorada por diversos autores[5]. No entanto, o projeto não terá que seguir esse caminho, ou seja, não teremos que registar as várias vidas, mas um momento crítico da vida do edifício, enfatizando: o entendimento da arquitectura como disciplina da transformação do espaço; e o entendimento do espaço arquitectónico como repositório e expressão simultânea de tempos diversos.

 

“The horse in motion” (1878), registo fotográfico de Eadweard Muybridge, de seminal importância na história e desenvolvimento da fotografia, visava, no imediato, responder à pergunta “Quando um cavalo trota ou galopa, nalgum momento tem as quatro patas no ar?” O exercício realizado por Muybridge, avocou de modo intenso a possibilidade da fotografia de revelar o que era imperceptível ao olhar humano, explorando a fugacidade, por via da suspensão do tempo, como matéria fotográfica por excelência.

 

Também na arquitectura a suspensão do tempo é matéria essencial. A arquitectura responde e expressa tempos muitos diversos, dos mais imediatos e quotidianos aos tempos e expectativas mais longos e perenes. Desta dicotomia são expressão, por exemplo as distinções entre “templo” e “cabana “ por Simon Unwin ou, entre espaços “servidos” e “servidores” por Louis Kahn. A esmagadora maioria das construções, mesmo as mais utilitárias, tem uma duração temporal mais longa que a da vida humana, sendo a tensão entre o fugaz da circunstância de cada momento e o desejo de perenidade e consequente suspensão da passagem do tempo, um valor permanente da arquitectura. Para além do registo, talvez seja esta partilha da tentação de suspender a passagem do tempo e a acuidade à fugacidade da vida uma das razões que sustenta a tão frutuosa relação entre arquitectura e fotografia.

 

Tal como Ignasi de Solà-Morales[6] defende em Terrain Vague (1995), os fotógrafos mostram uma sensibilidade especial para nos fazer compreender o que no território é “imperceptível” ou “invisível” na vida quotidiana. 

De facto, a fotografia contemporânea é uma das artes que melhor sucede em comunicar um visão única e analítica que simultaneamente compreende a realidade e a interpretea, imagens capazes de questionar o território, mostrando as formas como é transformado e vivido, os seus conflitos e arquiteturas e materiais heterogéneos. Interessa-nos, assim, que estes projetos de fotografia documental e artística explorem o conceito de “narrativa visual” extremamente importante para comunicar e permitir às pessoas compreenderem percepcionarem os espaços e como estes podem ser vivenciados e transformados.

 

Quando lançamos o desafio de fotografar estas arquiteturas na fugacidade de uma mudança, a mais das vezes profunda e rápida, não partimos com uma pergunta para ser esclarecida como Eadweard Muybridge partiu, mas sim, com a expectativa das perguntas que poderão ser suscitadas pelo registo fotográfico. Talvez mais como não saber quem são os amantes de Doisneau ou a “garota de Ipanema”. Que nos fique a curiosidade de conhecer, reconhecer, reinterpretar as “garotas e garotos” da arquitetura da nossa cidade a partir de um momento fugaz da sua vida.

 

Acima de tudo queremos fotografias que não são apenas signos de arquitetura, mas também registos que evocam a alma, ou o genius loci desses espaços arquitetónicos, características que podem ser observadas nos trabalhos de fotógrafos de referência como, por exemplo, Luigi Ghirri sobre a obra de Aldo Rossi[7] ou de Guido Guidi sobre a arquitetura de Carlo Scarpa[8], assim como, no presente, nas imagens de Helène Binet sobre as obras de Peter Zumthor ou Zaha Hadid [9] e de Hans Danuser sobre a arquitetura de Peter Zumthor[10]. Fotografias que não se limitam a ilustrar ou reconstruir os espaços ou edifícios, mas antes que criam uma narrativa visual capaz de uma leitura poética e crítica sobre os mesmos. Queremos oferecer novas perspetivas sobre estes edifícios, procurando detalhes e vistas que possam dar relevância a características do lugar que de outra forma não seriam reconhecidas. Pretende-se ir para além do óbvio, tentando comunicar o que é mais subtil ou complexo, tendo em atenção a riqueza das várias vivências do lugar destas arquiteturas.
 

 

 

 

 

[1] De Bruno Zevi até Kenneth Frampton como autores mais ligados às humanidades no campo da história e teoria, até Michael Batty e Bill Hellier, autores que fazem uma ponte significativa com as ciências duras, até um série de arquitetos ligados à prática, desde Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura, Rem Koolhaas, Rafael Moneo e muitos outros mais, os exemplos não teriam fim e apenas demonstram a riqueza multidisciplinar e a diversidade de modos de atuar no universo da prática e disciplina da arquitetura.

[2] Contamination and Purity in Early Modern Art and Architecture Visual and Material Culture, 1300-1700, Eds. Lauren Jacobi, Daniel Zolli; Krasny, E. (2008). The Force Is in the Mind: The Making of Architecture, Birkhäuser Basel.

[3] RAPOSO, Gabriela Maria Malheiro - O espaço como matéria comum entre a arquitetura e a arte contemporânea : contaminações entre as duas disciplinas. Coimbra : [s.n.], 2017. Tese de doutoramento. Disponível na WWW: http://hdl.handle.net/10316/32537; Álvaro Siza et al., Conversa entre Álvaro Siza, Eduardo Souto Moura, Nuno Grande e Gabriela Raposo: «Podemos falar de espaço contaminado na vossa obra?», áudio e vídeo, 7 de Março de 2015.

[4] Maros Krivy: Krivý, M. (2009). Art and empty space: the case of Kaapelitehdas. Eckhardt, F.; Nyström, L.. Culture and the city (689−711). . Berlin: Berliner Wissenschafts-Verlag; Krivý, M. (2009). Notes on architecture. Reconstruction: Studies in Contemporary Culture, 9 (2); Krivý, M. (2011) Political Economy of Landscape [portfolio]. Scopio Magazine 1.2-3, 48-61

[5] Crossing Borders, Shifting Boundaries: The Aura of the Image  ISSN 2183-8976 [Print] 2183-9468 [Online] Volume 1, Issue 1 | Publication year: 2016 DOI 10.24840/2183-8976_2016-0001_0001(https://www.sophiajournal.net/sophia-1)

[6] Sola-Morales (1995), Terrain Vague, em Territórios, Editorial Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2002 Kraus, Rosalind, The originality of Avant-Garde and Other Modernist Myths, MIT Press 1985

[7] Alona Pardo e Elias redstone (Ed.) Constructing Worlds: Photography and Architecture in the Modern Age, Prestel, 2014, p. 153.

[8] Michael Jakob, “On the Poetics of Materials: The Photographic Gaze into the secrets of Matter” in Concrete: Photography and Architecture, Verlag Scheidegger and Spiess, 2017, p. 79.

[9] Hélène Binet, entrevistada por Susana Ventura, “The Pure Sensation of Photography”, Scopio International Photography Magazine 1 1/3, Oct. 2010.

[10] Lorenzo Rocha, “Building Architectural Images: on Photography and Modern Architecture” in Concrete: Photography and Architecture, Verlag Scheidegger and Spiess, 2017, p. 50.